Ela entrou por um estacionamento abandonado, pensou acho que não
é aqui.
Pessoas saiam esquisitas, pagando aquelas migalhas custosas de
sábado à noite. As migalhas pesam no orçamento, mas não na alma
dos que fazem, pensam e, adivinhem, vivem o mesmo todas as
noites. Típica saída, a obrigatoriedade mofada de se divertir aos
sábados.
No ritual das migalhas do estacionamento, todo sábado elas se
dirigem a um guichê, o preço está pago, o pão foi comido por mim
meu querido, eu não gostei, mas isso não importa, sou melhor que
você. Por favor, o troco.
Mas eu falava das migalhas, do homem migalhas, num cubículo,
um aquário para feras, uma cenografia cenicamente anônima. Um
ser quase sombrio, réptil do pântano, confinado em exposição, se
arrastando na baba pra contar as moedas. Ele valida o ticket, sorri
num muito obrigado de má vontade, range cinicamente os dentes e
imagina devorar a cabeça do primeiro esquecer o troco, o troco de
estar vivo, de saber que a vida é um pouco mais que entretenimento
barato de quinta categoria. Ele, réptil acorrentado atrás do vidro,
tinha que se contentar com sua impotência de servir de circo,
babando, pra mais tarde, chegar em casa e descarregar-se do
mundo, devorando cabeças de esposas, misturadas com almôndegas
ao molho sugo sangue.
Mas, a burguesia, além de cega é inconsciente e não percebe o
perigo. Se diverte forçosamente no ritual interminável de trabalhar,
dormir, comer, gastar, tomar banho e jantar. Contar moedas, rir e
reclamar, e sair. É praticamente o mesmo. O resto são variações
ilusórias numa música quadrada e metálica. Nada é mais certo do
que o contar moedas e faltar na alma.
Acontece que ela não estava de humor para uma noite surrealista.
Passou rápido por ali, fingiu não enxergar, não fazer parte do mundo,
fugiu da luz verde do crocodilo e desviou para a casa de jazz. O outro
mundo possível na selva torrente do rio de metais.
Virando à esquerda ela encontrou o reduto de bons músicos.
Um lugar meio estranho, meio cheirando a mofo, com cara de
abandonado, descuido. Não era isso que ela esperava que estivesse
do outro lado do mundo.
Voltar ou não voltar? Mas é preciso enfrentar o crocodilo verde. Não,
vamos ficar. Já basta ser sábado à noite e os alienígenas estarem
soltos lá fora.
Ela entra com desconfiança, um rapaz esquisito explica o
funcionamento da casa e a retêm na porta. “Bem meu querido, não
é preciso de tanta cerimônia para que eu gaste meu sentimento
de solidão neste lugar, não é?” Já vi que o lugar é uma espelunca.
Sim, ela era assim. Irônica, descrente e apaixonante, puro
magma dentro de uma crosta larga de frio e decepção. No
entanto, sua camada de atmosfera era puro riso, humor e doçura.
Sim, uma espécime rara numa terra estranha e complexa.
Finalmente ela entrou, ultrapassou o obstáculo do Bob Marley
atrasado para sua época. Ufa, ela não suporta pessoa que tentam
impressionar.
Molduras de quadros, piso de estacionamento, tudo quebrado, sem
cuidado. O paraíso é este? Socorro, eu quero sair, ela pensou. Nada
de lugar para sentar, nenhuma decoração agradável, paredes ruindo
e deus me livre, de dia deve ser pior. Ela tem esses arroubos chiques
de madame de vez em quando. Na verdade é nobreza, estirpe de
alma, frescura de quem ama o belo e o cuidadoso. Acontece que ela
fica mau humorada quando é contrariada.
Porém a música tomava conta do espaço. Ela sentou-se numa
poltrona velha de madeira, quase invadindo o palco, quase
encostando na perna da flautista. Por sorte, os músicos são
espécimes melhores e a musicista só fez sorrir e continuar.
Ufa, ela estava salva.
Nathalia Lorda